A lenda das guaraíras
Segundo o Historiador Hélio Galvão, onde hoje assenta a quieta cidade de Arez, fundaram aldeia de Guaraíras. Cinco missionários deixaram sinais de sua passagem: Luiz Pinto, José dos Reis , Jerônimo de Albuquerque, Sebastião Figueiredo e Gaspar da Silva. E deixaram sobretudo o traço que se não apaga: a figura envolta na névoa da lenda.
Fico olhando o outro lado da lagoa. Arez trepada na barranca, a ilha do Flamengo desnuda da vegetação que a emoldurava no contraste das águas da lagoa. As lendas: O caminho subterrâneo que vai por baixo dágua até o convento dos Jesuítas em Arez. Os imensos tesouros que dormem nas entranhas desvirginadas da ilha. E aquela outra, a do Peixe-boi.
Certo índio da Aldeia de Guaraíras em momento de retorno sentimental à vida selvagem, esquecido das lições que recebia, matou uma criança. Matou e comeu. O povo com reações violentas dos parentes da pequena vítima, imolada à tradição cultural da antropofagia, que irrompera, destruindo trabalho paciente, mas superficial dos padres da companhia.
O superior da missão não pôde omitir-se na circunstância, mas não podia usar a arma da violência, segundo a norma invariavelmente adotada nos métodos da catequese dos discípulos de Santo Inácio. Tinha porém que impor o castigo exigido. E mandou que o índio, farto ainda das carnes da criança, fosse ficar dentro dágua, até que fosse chamado.
E o índio lá ficou, mas quando foi procurado não se encontrou.
Começou então a aparecer um peixe-boi e vindo, de um lado para outro.
Alta noite, o que se ouvia, subindo das águas salgadas da lagoa, era o gemido, pavoroso de tremer, horripilante, dolorido, inesquecível. A tremenda expiação devia perdurar por muitos anos, segundo a sentença do missionário.
Os pescadores iam pescar e voltavam, a rede enxuta: antes de dar o primeiro lance, o peixe-boi, aparecia. De lá de baixo subia o gemido cortante, agoniado e rouco, como se alguém se afogando.Era o índio que devorava a criança, condenado àquele sacrifício. Então, voltavam apavorados, sem peixe nenhum, varejando a canoa com toda a velocidade possível.
Os gemidos eram mais feios, mais lancinantes, mais pungentes, mais magoados, nas noites de luar, dorso do peixe-boi que subia à superfície.
O pior era a incerteza. O peixe-boi estava em toda parte. Certa noite, era lá no Canto do Boqueirão; outra era no pé da Moita (Moita é o nome popular da Ilha do Flamengo); outra era na Ponta do Lourenço; outra na ilha de Manuel Pedro; outra no Córrego das Capivaras. E sobretudo na Barra do Tibau, quando menos se esperava, lá vinham aos ouvidos os urros tremendos, feios, medonhos, apavorantes.
Singular destino o dessa lagoa: quando menos se espera o mar a devolve, depois a retorna. Desde 1924 que a tomou. Agora está preparando a restituição, dentro de poucos anos , estará de novo isolada do mar, que está erguendo a barragem de separação. Sem concreto e sem cimento.
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